A nova diva do fado português
Marisa dos Reis Nunes nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo), capital da província ultramarina portuguesa de Moçambique, a 16 de Dezembro de 1973. É filha de pai português, José Brandão Nunes, e mãe moçambicana, Isabel Nunes.
Ao colo da mãe, com três anos, chegou ao Aeroporto da Portela em Lisboa, pela primeira vez, em 1977. Em Lourenço Marques, o pai trabalhara como gerente de uma empresa holandesa, de nome Zuid. Durante o êxodo das famílias portuguesas nas antigas colónias ultramarinas portuguesas, o pai abandonou Moçambique com a família mais chegada, escolhendo Lisboa para recomeçar uma nova vida. Instalaram-se em Corroios e mais tarde no n.º 22 da Travessa dos Lagares, na Mouraria.
Em menos de 12 anos, Mariza passou de um fenómeno local quase escondido, partilhado apenas por um pequeno círculo de admiradores lisboetas, para uma das mais aplaudidas estrelas do circuito mundial da World Music.
Álbum “Fado em Mim”
Tudo começou com o seu primeiro álbum, “Fado em Mim”, editado em 2001, que depressa”, conduziu a numerosas apresentações internacionais de grande sucesso – o Festival de Verão do Québec, em que recebeu o Primeiro Prémio (Most Outstanding Performance), o Central Park de Nova Iorque, o Hollywood Bowl, o Royal Festival Hall, o Festival Womad – e que acabou por lhe conferir o prémio da BBC Rádio 3, para Melhor Artista Europeu na área da World Music.
Fado em Mim era um álbum entusiasmante, mostrando uma jovem cantora com uma voz cheia e vibrante, uma forte personalidade artística. Cantava ainda vários sucessos do repertório de Amália, mas a sua abordagem à herança da grande diva do fado era já tão pessoal que podia facilmente afastar de si qualquer sugestão de mera imitação. E no seio do seu repertório original “Ó Gente da minha Terra”, do jovem compositor Tiago Machado, depressa se converteu num enorme sucesso, por direito próprio.
Álbum “Fado Curvo”
Em 2003, surgiu o seu segundo álbum, “Fado Curvo”. Era claramente um passo em frente no processo de reforço do seu estilo pessoal e do seu repertório próprio, com a ajuda de arranjos excelentes de Carlos Maria Trindade.
Amália estava ainda presente, com a sua emblemática Primavera, sobre poema de David Mourão Ferreira, mas também estava o cantor de intervenção, José Afonso, um ícone da oposição democrática ao regime de Salazar nos anos 60 e 70, e muito do restante material era novo e inspirado.
“Fado Curvo” acabaria por chegar ao 6.º lugar na tabela Billboard da World Music e por ganhar o Deustche Schallplattenpreis e o European Border Breakers Awards, atribuído no MIDEM de 2004.
As apresentações públicas de Mariza multiplicaram-se, com grandes triunfos pessoais no Royal Festival Hal de Londres, na Alte Oper de Frankfurt, no Théâtre de le Ville de Paris, no Walt Disney Concert Hall de Los Angeles (com a Orquestra Filarmónica de Los Angeles), no Teatro Albéniz de Madrid ou no Teatre Grec de Barcelona.
O seu estilo interpretativo deste período, pode ver-se no seu DVD Live in London, que contém o seu recital de Março de 2003, na Union Chapel e demonstra bem os seus dotes vocais impressionantes e a sua auto-confiança crescente no palco.
Em 2004, juntamente com Carlos do Carmo, seria nomeada pelo Presidente da Câmara de Lisboa, Embaixadora da candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, que viria a ser aprovada pela UNESCO, em Novembro de 2011.
Álbum “Transparente”
Em 2005, ano em que recebeu o Prémio de Melhor Intérprete da Fundação Amália Rodrigues e foi nomeada Embaixadora de Boa Vontade da UNICEF, seria para Mariza um ano particularmente notável no plano artístico, com a saída do seu terceiro álbum, “Transparente”.
Naquela obra discográfica, emergiria uma faceta nova e mais madura, tão segura dos seus dotes vocais que podia agora dar-se ao luxo tanto de sussurrar e de cantar baixinho, como de demonstrar os seus plenos poderes, construindo o clímax de cada frase de um modo que impressionava pela serenidade e pela inteligência, articulando o texto de uma forma ainda mais expressiva.
Soube encontrar a oportunidade para homenagear três grandes fadistas, com os quais sente profundas afinidades artísticas e pessoais: Amália, cujo Segredo, de Reinaldo Ferreira e Alain Oulmain, fora o último original lançado em sua vida; Fernando Maurício, recentemente desaparecido, que o público popular de Lisboa aclamava como “O Rei do Fado” e com quem ela própria cantara por diversas vezes no bairro da Mouraria, em que ambos viviam; e Carlos do Carmo, cujos conselhos Mariza sempre reconheceu como um importante factor formativo na sua personalidade artística e ao qual se dedicava uma versão muito afectuosa de um dos seus maiores sucessos, “Duas Lágrimas de Orvalho”.
O repertório era agora mais variado, tanto em termos musicais como no plano poético, e apoiava-se em orquestrações extraordinárias de Jacques Morenlembaum. Um CD e um DVD do seu concerto antológico de Lisboa, em Setembro de 2005, com o acompanhamento da Sinfonieta de Lisboa, dirigida pelo próprio Morenlenbaum, seria lançado em 2006, e constituiria mais um documento a revelar bem esta etapa de maturidade reforçada. Neste mesmo ano, receberia das mãos do Presidente da República, Jorge Sampaio, o grau de Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique.
Apresentação nos palcos mais importantes
A carreira de Mariza prosseguiria a partir daquela altura, com um sucesso maior do que nunca, com constantes apresentações nos palcos mais importantes do mundo: o Olympia de Paris, Frankfurt Opera, Royal Festival Hall de Londres, o Le Carré de Amsterdão, o Palau de la Música de Barcelona, a Sydney Opera House, o Carnegie Hall de Nova Iorque, o Walt Disney Concert Hall de Los Angeles – neste último caso, com uma cenografia especialmente concebida para o efeito por nada mais, nada menos do que Frank Gehry.
Cinema e Televisão
Em 2007, foi uma das principais “estrelas” do filme Fados, do realizador espanhol Carlos Saura, exibido em quase 100 países, e protagonizou o documentário Mariza and the History of Fado, produzido para a BBC, pelo crítico musical, Simon Broughton, e no ano seguinte participou de forma destacada na primeira série documental da televisão pública portuguesa, sobre a História do Fado, Trovas Antigas, Saudade Louca, narrada por Carlos do Carmo, sobre guião de Rui Vieira Nery.
Álbum “Terra”
Em 2008, surgiu o seu quarto álbum, “Terra”¸ com direcção musical de José Limón, reunindo o novo repertório, que interpretara nas suas digressões mais recentes, com sucessos como “Alfama” e “Rosa Branca” e parcerias com Tito Paris, Concha Buika, Ivan Lins e Dominic Miller.
Álbum “Fado Tradicional”
Em 2010, seria o ano de um projecto muito especial, o álbum “Fado Tradicional”, no qual Mariza reafirmaria a sua ligação à tradição mais autêntica do Fado clássico, regressando a alguns dos mais destacados compositores da história do género, como Alfredo Marceneiro, ainda que com uma abordagem interpretativa assumidamente individual e contemporânea. Nesse mesmo ano, seria condecorada pelo Governo francês, com o grau de “Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras”.
Comentário do autor da biografia
Nenhum outro artista português, desde [a diva] Amália Rodrigues, construiu uma carreira internacional com semelhante sucesso, acumulando êxito após êxito, nos palcos mundiais de maior prestígio, referências entusiásticas dos críticos musicais mais exigentes e uma sucessão infindável de prémios e distinções internacionais. Como sempre, os seus parceiros musicais continuam a ser apenas os melhores: Jacques Morelenbaum e John Mauceri, José Merced e Miguel Poveda, Gilberto Gil e Ivan Lins, Lenny Kravitz e Sting, Cesária Évora e Tito Paris, Rui Veloso e Carlos do Carmo. E o seu repertório, embora permaneça firmemente ancorado no Fado clássico e contemporâneo, expandiu-se para incluir mornas cabo-verdianas, clássicos do Rhythm & Blues e quaisquer outras melodias que lhe sejam queridas.
Nos últimos 12 anos, Mariza ultrapassou já de muito longe a fase em que poderia constituir apenas um mero episódio exótico na cena da World Music, capaz de ser substituído por qualquer novo fenómeno colorido que aparecesse num outro canto geográfico do mercado da indústria discográfica. Provou ser já uma grande artista internacional, de forte originalidade e de enorme talento, de quem muito há que esperar no futuro. A menina de Moçambique, criada no bairro popular lisboeta da Mouraria, apropriou-se das raízes da sua cultura musical e converteu-se numa artista universal, capaz de se abrir ao mundo, sem perder a consciência intensa da sua identidade portuguesa. E o público português é o primeiro a reconhecer o seu triunfo e a pagar-lhe com um amor e uma gratidão sem limites.
RUI VIEIRA NERY/adaptado