Revista Biografia

Covid-19: Minha experiência na China

Lembro-me que foi no início de Janeiro quando havia rumores de que havia uma gripe grave nos arredores da China. Estávamos na sala de aula, entre amigos, quando Ali (meu colega) comentou que havia uma gripe séria em Wuham, com sintomas como falta de ar, febre de temperatura muita alta, e dor de cabeça. Recordei-me e comentei:

– Acho que essa doença já está em Chongqing (que é na província onde vivo).

– Não Tatiana ainda não está cá – reagiu Ali.

– Já sim, acredita. Semanas passadas uma das minhas amigas foi ao hospital a reclamar que estava com falta de ar, e outra antes de ontem estava com uma febre louca, atingiu 43 graus.

– Haaa…Tatiana não viaja connosco, ainda não está aqui.

A conversa foi desenrolando e o assunto passou, pensávamos nós. Tanto as férias semestrais, quanto às do fim do ano chinês aproximavam-se.

Do dia 16 a 20 de Janeiro, se a memória não me falha, a maior parte das instituições já usufruía das férias e as estradas de Chongqing (uma província económica) estavam meio vazias, na zona onde moro. Eu resido num campus. Era estranho para um país onde os chineses não costumam ficar nos dormitórios durante as férias.

Mas a vida continuou. E nós tínhamos mais espaço para andar, ouvíamos comentários de longe sobre o vírus a dispersar-se, mas ainda não existiam motivos para a China tomar medidas drásticas de prevenção.

Tínhamos um restaurante/bar (Mojar) na área do campus, a cantina dos estudantes internacionais (como as vezes no referíamos). Assim chamávamos pois, é um restaurante onde é possível encontrar muitos estudantes de diferentes origens. E era muito frequentado, mas com as férias o fluxo também diminuiu.

Obras de Muenda

Lembro-me também de ter contraído uma gripe nessa altura, onde a garganta doía-me. Na altura já havia a campanha: “se está com gripe, dirija-se ao centro médico”.

Depois de algumas medicações caseiras sem sucesso, preferi ir à farmácia e pedir alguns medicamentos. Era tanta dor na garganta, mas fui persistindo. Acho que a gripe durou quase uma semana activa e, de repente, iniciou a disseminação de mensagens/alertas sobre prevenção do novo vírus (nessa altura já havia se confirmado que se tratava do novo vírus no ser humano).

Os alertas advertiam para que se evitasse sítios aglomerados, também exortavam que se comprassem máscara e gel desinfectante. Contudo, quem ia ao supermercado e farmácias já não encontrava esses produtos.

Acontecimentos dos dias 21-28

Eu e um grupo de moçambicanos tínhamos uma viagem combinada para o fim-de-semana. Enquanto o dia aproximava-se, os relatos do agravamento do vírus aumentavam. Já se registavam algumas mortes e os alertas de prevenção circulavam com mais frequência.

As dúvidas entre nós, se viajávamos ou não, eram maiores. Mas somos moçambicanos, e quando o assunto é curtição, já se sabe nem! Então fomos avante com o nosso plano, mas todo cuidado era pouco. Eu tenho amigos de outros países atenciosos, tentaram convencer-me a ficar trancada no lar, mas a vontade de ir conhecer outras partes da China era maior.

Obras de Muenda

Eu ouvia comentários de que os comboios normalmente ficavam cheios e com muita pouca higiene. Isso porque alguns nativos têm o defeito de tossir e cuspir no local, um acto que irrita a todos internacionais, mas para eles é completamente normal. Concluímos que era por causa do piri-piri e temperos que eles consumiam tanto. Enfim, não sei se realmente era essa a razão.

Entretanto, não foi o que vimos naquele dia. O comboio estava completamente vazio e limpo, enquanto viajávamos, líamos notícias sobre o quão grave a situação estava a ficar. Uma das razões principais de termos ido às outras cidades era curtir as melhores discotecas naquela zona. Então não tinha como chegar a Chengdu e não sair para uma balada. Agitamo-nos até que os que receavam deixaram o receio de longe.

Chegámos à discoteca e havia muita gente a curtir, mas a maioria com máscaras. Imagina estar no groove com máscara. O momento em que danças, precisas de mais ar, tiras a máscara para receber aquele químico vitalício. Até então ainda não se sabia ao certo como aquele vírus era transmitido; se era através do ar, contacto físico, contacto de superfície… bom, todo cuidado era pouco.

Enquanto lá estávamos, algumas províncias anunciavam o controlo restrito da entrada de cidadãos das outras cidades e províncias. Ficámos naquele receio de que não conseguiríamos voltar a Chongqing. Mas também vendo os dados, Chongqing tinha mais casos confirmados que Chengdu, Sichuan. A ideia de ficar em Chengdu apareceu e era maior, mas não era sustentável e cada dia os números aumentavam em toda china e a espalhar-se pelo mundo.

Acalmamo-nos e dissemos mais um dia não há perigo. No domingo voltamos. A regra era ficarmos em quarentena. Os moçambicanos na base militar ficaram realmente em quarentena, nós (os outros) tentámos e só rezávamos para que em momento nenhum tivéssemos sintomas.

As ruas de Chongqing estavam vazias, vídeos e comentários de conhecidos a retratar a situação de Chongqing e outras cidades, algumas a informar que já tinham saído da China. As pessoas estavam realmente a evitar ficar aglomerados, encontro entre amigos já não acontecia. Alguns, inclusive eu, ficávamos irritados porque o medo psicológico das pessoas era louco, mesmo dentro do dormitório as pessoas queriam ficar a sós nos seus quartos e era tempo de férias, então estávamos só nós que tínhamos decidido em não viajar.

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Lembro-me que conversámos, entre nós, acredito que era psicológico, mas sentíamos alguns sintomas como a falta de ar, eu que ainda tinha os resquícios da gripe, tinha que evitar tossir quando estivesse com amigos, apesar de eles saberem que se tratavam de sintomas da gripe anterior. Aquele terror de que também pode ser o coronavírus era inevitável. Mas o foco era acreditar que não se tratava de nenhum coronavírus.

O tempo foi passando, as medidas foram ficando mais sérias. A preocupação da volta de vários chineses para Chongqing, tanto quanto outras províncias, eram maiores porque deixa as portas abertas para mais pessoas infectadas, tendo em conta que a incubação do vírus ia até aos 14 dias.

Saídas injustificadas não eram aceites, controlo em todos portões dos campus ou entrada de condomínios e apartamentos. Pessoas não residentes lá não eram permitidas. Só era permitido o funcionamento de hospitais, farmácias e supermercados. Nos supermercados já se fazia sentir os efeitos do vírus, do bloqueio das fronteiras com as prateleiras vazias.

Ver o vizinho de quarto era milagre. Fomos analisando para ver se a situação melhorava, mas só piorava. A decisão entre ficar na China ou ir para casa era a “refeição” de hora em hora. Nessa altura também concluí que a informação a ser transmitida internacionalmente não era real ao que estava acontecer, tanto que tentei persuadir aos meus pais para voltar, sem criar muita preocupação, e eles simplesmente informaram-se que o melhor seria eu ficar onde estava, tanto que não havia fundos suficientes para a minha passagem.

Conformei-me com a decisão, tanto que já não me alimentava dos momentos em ter que decidir se ficava ou não. Mas a situação na China a cada dia piorava, a procura por máscaras, desinfetante e luvas era maior e não era encontrada. Havia tanta gente, alunos dentro do dormitório sem máscaras. O sector internacional da universidade teve que criar condições para nos fornecer os utensílios necessários.

Livros de Muenda

O número dos infectados internacionalmente aumentava. Em Wuhan já não se permitia a saída dos residentes, essa acção já estava a ser aplicada em outras províncias, a realidade de que em breve Chongqing estaria na mesma situação era preocupante, mas já tinha acordado com os meus pais, então nem quis alimentar o pensamento.

Lembro que em dois dias ou três a minha mãe ligou-me e pela primeira vez perguntou qual era a situação real do vírus na China. O meu amigo riu-se quando contei-lhe o sucedido porque estávamos no dia 30 de Janeiro, e foi o momento que notei que a informação internacional já começava a reflectir realmente a realidade, através das acções dos meus pais.

Acordamos que viajaria. E tive a sorte de encontrar alguns moçambicanos no voo. Lembro-me, quando o avião aterrou em Maputo tive um alívio no coração, a minha mãe e a minha tia tinham medo de tocar-me e estavam com um semblante de terror; enquanto o meu trauma já tinha passado e tentava acalmar-lhes

O meu pai foi o único corajoso, pois estava com um ar mais leve. Mas foi simplesmente quando cheguei à casa que notei que aqueles dias foram de terror e prisão, não sabíamos os dias nem as horas, a rotina era acordar, tomar banho e voltar para cama, tentar exercitar, já que diziam que exercícios ajudavam ao sistema defensivo, por acaso os chineses têm uma rotina de exercícios muito boa.

Desde o surto de vírus o consumo da vítima C era diária, ver filmes e seriados e cansar. Tentávamos fazer chamadas de vídeos em grupo, mas a situação era louca.

Saí de lá, mas sempre a manter-me actualizada dos acontecimentos. Dois a três dias depois da minha saída, já não era permitida a entrada e saída dos residentes do campus para compra de produtos alimentares, virou tudo online e cada um na sua acomodação. Virou um estilo de vida que infelizmente o ser humano teve que se adaptar.

Agora já vejo vídeos do pessoal nos shoppingmalls, a cantina do estudantes internacional a anunciar a sua abertura, o resto do mundo está em caos mas a China está voltando à normalidade.

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Este texto foi elaborado ou encontrado numa fonte ligada ao biografado, podendo ter algumas adaptações da Revista Biografia.

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