Revista Biografia

Memórias de uma estudante

Uma vez o Doutor Aquino chegou à sala acompanhado da professora Yura. Era uma professora japonesa. A turma olhou expectante e refinada no comportamento, afinal de contas tínhamos percebido que tínhamos visita.

Então o Doutor parou diante da turma, ao lado da sua mesa de secretária, bem próximo ao quadro branco. A visita ao seu lado. Olhou para mim e disse:

– Chefe!

– Bom dia professor!

– Chegou a hora da verdade…

– Como assim, Doutor?

– Hoje é dia de preparação. Já chega de teorias… Hoje é só prática.

Eu sentada na fila da frente, num tom sorridente, levantei-me e disse:

– Agora é para fazer o quê?

Era um sinal de prontidão. Estava animada para saber o que vinha. Então o professor respondeu:

– Eu não sei. Faça aquilo que você estudou.

– Isso não basta professor…

– É para você fazer tudo aquilo que você aprendeu a fazer nas aulas de bioquímica.

– Qual é a preparação que tenho de fazer?

O professor riu-se. Eu também. A professora Yura disse para eu aproximar a mesa para frente, mais próximo do quadro. Pedi aos meus colegas para ajudarem a levar a mesa para junto dela. Foi então que o professor anunciou que iríamos preparar cloreto de sódio.

Aquilo vem em espécie de um pó quando está concentrado. Colocou sobre a mesa. Tirou outros materiais e pôs na mesa. E começou a perguntar-me o nome de cada um deles. E eu respondia acertadamente. Fiquei maravilhada com aquilo. Poder confirmar que sabia o que vi na teoria.

Doutor Aquino questionou a seguir quais eram os passos que eu teria de dar para preparar o cloreto de sódio.

– Primeiro temos de fazer pesagem do cloreto concentrado. E pôr no recipiente…

Depois daqueles passos tinha de fazer cálculos. E mandou-me fazer no quadro. No fim, perguntou-me com um tom de autoridade se aquelas contas estavam correctas. Disse para ele que eu não sabia. A turma em silêncio, só a observar. O professor acenou a cabeça. Gerou suspense na turma. Depois disse que estava correcto. Fiquei aliviada e alegre.

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Comecei a fazer a preparação do cloreto de sódio. A sala era um pouco apertada. Tivemos de sair para varanda. Fui preparar o cloreto de sódio. Transferi de um recipiente para o outro, rotulei e fui colocar no laboratório, onde fui com o professor.

– Para que serve o produto que acabas de deixar no laboratório?

– Este produto serve para muita coisa. Podemos utilizar para descongestionamentos nasais, para quem tem falta de união de sódio no organismo. Podemos administrar o medicamento cloreto de sódio para pessoas com estes problemas de saúde.

– Obrigado! Está a ver que é simples?

– Sim, professor. Eu não sabia que era simples. Vendo só a teoria parecia complicado. Agora com a prática, vejo que é muito simples.

Seguiram outros colegas sucessivamente. Foi um trabalho muito bonito. Todos na sala alegramo-nos bastante com aquele dia.

~*~

Mais interessante ainda foi o estágio. O meu aconteceu no Hospital Geral José Macamo. Lá tem uma farmácia que não fecha: a farmácia de urgência.

Nunca tinha trabalhado de noite na minha vida. A escala era piquete [7h30 às 18h] e no dia seguinte era noite. Primeiro dia correu tudo bem, era piquete. No segundo… o medo preencheu-me. Não conseguia digerir a ideia de trabalhar de noite. Muita coisa má vinha à minha mente.

A técnica Dércia percebeu que o medo dominava-me. Naquele momento era apenas eu e ela na farmácia.

– Vamos trabalhar, Anabela. Não tenha medo. Estamos ao lado da polícia – encorajou-me após ler o meu rosto.

Aquela farmácia era muito agitada de noite. Há muita enchente. Era como se quase todos que adoeciam na cidade de Maputo, de noite, fossem para ali. Trabalhei até as seis da manhã. Na hora de saída, a técnica perguntou-me o que tinha achado da noite. Não respondi a pergunta [risos…] pedi para esperar pela segunda noite. Queria ver bem como funcionava.

Na noite seguinte, estava mais à-vontade. Até dispensei a técnica. Pedi que ela descansasse, que arranjasse uma cadeira para sentar e assistir-me a trabalhar. A 1h da manhã, trocamos. E por volta das 4h trocamos. Já tinha-me adaptado. Fiquei animada. Fiquei ali um mês, depois fui trocada para outro sector.

O nosso estágio era rotativo, não permanecíamos no mesmo sector. Os outros colegas estavam nos outros sectores e depois trocávamos. Foi assim durante três meses. Aprendi muita coisa naquele hospital. Comecei pela maternidade, seguiu-se a farmácia de urgência, e depois o depósito de medicamentos.

Na farmácia de urgência, meu trabalho era interpretar receitas: que é ver o medicamento prescrito; observar a idade, se o paciente pode ou não tomar o medicamento em causa. A receita tinha de estar completa, tinha de constar a quantidade; fórmula farmacêutica. Caso contrário, alguma coisa não estava bem, devolvíamos ao prescritor para completar.

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Um pouco pesado foi o trabalho no depósito. Tínhamos de receber e arrumar medicamentos. Vinha o camião descarregávamos e arrumávamos de acordo com os códigos do formulário de medicamento. Mas foi uma boa experiência.

~*~

A minha turma era constituída por muitas crianças. Eu era uma dos três alunos crescidos da turma. Como crescida em relação a elas, procurava chamar atenção deles, para se comportarem.

Primeiro o ambiente ressentiu-se da diferença de idades. Mas não demorou para nos unirmos como turma e convivermos. Eles mesmo chegaram a passar a chamar atenção a nós mesmos.

A formação de grupos de estudos contribuiu para facilitar o estudo e relacionamento. E também o primeiro ano foi muito pesado. Não tínhamos tempo nem para andar aí a comer sandes. Os grupos tinham planos de cada disciplina, então tínhamos de avançar com os estudos e ir para aula enquanto já tínhamos preparado em grupo o tema da aula. Íamos à aula já com questões sobre o tema para o professor explicar ou aprofundar. Isso implicava ou o grupo ter um sítio para se encontrar ou permanecer na escola depois das aulas.

~*~

Passavam das 7horas. Alegre estava eu. Acabava de entoar o Hino Nacional, na formatura com os colegas. Contemplava o raiar do sol, enquanto ia para minha sala. Era uma sala grande e de paredes brancas. Carteiras com cor de madeira. Eram carteiras singulares.

Eu sentava numa das carteiras frontais, bem próximo da porta e diante do quadro. Eu era a chefe de turma. Entrei pela porta ao lado de outros colegas e sentei-me. Meu smartphone deu sinal de chamada. Não era normal ligarem-me logo pela manhã. Então atendi.

A chamada foi breve. Doutro lado da linha foi anunciada a morte do meu tio. Não dava para acreditar. Eu tinha falado com ele no dia anterior. Fiquei abalada. Transtornada em fracção de segundos. Não parecia mais uma estudante do curso de farmacêutica. Meu rosto ficou escorregadio e preenchido de lágrimas.

Meus colegas não me reconheceram. Chegaram mais próximos de mim. E procuraram saber o que havia acontecido. A minha resposta era: meu tio morreu. A minha irmã estudava comigo na mesma escola, mas noutra turma. Os colegas não sabiam o que iam fazer. Não sabiam se diziam uma palavra de conforto ou simplesmente abraçavam. Era primeira experiência.

Surgiu uma ideia de um colega que eu saisse da sala porque não havia condições para continuar lá. Depois a turma organizou-se. Quatro colegas vieram levar-me. Pediram as chaves do meu carro para me levarem para casa, porque eu não podia conduzir naquele estado. Acabou tudo correndo bem, meus colegas acompanharam-me para casa e de lá eu e a família viajamos para participar das cerimónias fúnebres do meu tio.

~*~

A sensibilidade humana dos colegas do ITL e da direcção impressionou-me. Tivemos um colega, que era órfão de pai. Ele tinha vontade de estudar, mas já não conseguia pagar as mensalidades.

Quando analisamos, vimos que permitir que o colega fosse impedido de prosseguir com os estudos seria aumentar aflição dele e da sua família. Fui falar com a chefe geral das turmas na escola. E ela desencadeou uma campanha na escola para juntar dinheiro para ajudar o colega a pagar as mensalidades. Os colegas foram sensíveis e contribuíram. Cada um foi tirando o dinheiro que tinha e a direcção da escola também ajudou. E o colega prosseguiu com os estudos.

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É jornalista e webdesigner desde Setembro de 2013. Na sua caminhada jornalística, está registada sua passagem pelo jornal O Nacional; Revista ÍDOLO, onde chegou a desempenhar as funções de editor executivo; para além de ter sido oficial de marketing digital na Ariella Boats. Foi, também, jornalista correspondente da Revista MACAU, em Moçambique. Actualmente é jornalista do jornal Notícias. É, desde 2020, licenciado em jornalismo, pela Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Sua caminhada no mundo do empreendedorismo digital iniciou com o lançamento da plataforma Biografia, em 2016. É também, o fundador do site evangelístico Chave de Davi, em 2018; e da loja online O Ardina Digital. Todos projectos foram concebidos ao lado do seu amigo Deanof Potompuanha.

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