Revista Biografia

Essa bonita não dá para ninguém

Havia um primeiro andar entre as avenidas 5 de Fevereiro e da Liberdade, na Matola 700. Era de cor cinzenta, num tom escuro. No rés-do-chão, existia uma loja e uma padaria. E em frente à loja e à padaria, existiam umas “banquinhas” montadas com caixas de refrigerantes e papel de caixa, desconstruídas e estendidas sobre caixas de refrescos. As donas das “banquinhas” vendiam rebuçados, pipocas, bolachas, alface e diversos alimentos básicos.

As proprietárias ficavam sentadas junto à parede do prédio, usando-o como encosto. As pequenas “bancas” estavam a uns 20 metros da estrada de duas faixas, na Av. 5 de Fevereiro, de costas para o Este, e ao lado direito da Av. Da Liberdade. Entre as “banquinhas” e a estrada havia um pavimento prefabricado de betão, até à pequena vala de drenagem ao lado da estrada. Era uma vala com dificuldade de esvaziamento. Naquele dia tinha água turva e um pouco de lixo à mistura. E atrás, junto à vala, estavam pessoas com rostos expectantes para subir um “chapa” (mini-bus usado como meio de transporte colectivo) com destino à Liberdade. Eram por volta das 14:00 horas. Não havia tanta gente na paragem.

Naquela esquina, a paragem para os “chapas” que faziam a rota Matola 700-Museu/A.Voador ficava na Av. da Liberdade, em baixo do primeiro andar, em frente à porta da loja, no rés-do-chão. Os “chapas” com destino à “700”, quando chegavam àquela esquina, viravam para direita, sentido norte-sul, entrando pela Av. da Liberdade, em direcção a Padaria Boane.

Eram oito pessoas naquela paragem. Havia, entre elas, um encanto em forma de mulher. Não era uma guitarrinha não… Era uma guitarra. Ela tinha um corpo presente! Era negra, não trazia nem batom nos lábios nem maquilhagem. Tinha extensões em forma de tranças. Trazia uma blusa de alças branca, com riscas diagonais pretas, na parte frontal, uma saia preta que ia até aos pés, e um chinelo feminino branco. A blusa e a saia eram um pouco justas ao ponto de evidenciarem a guitarra na qual repousavam.

Enquanto os “chapas” não apareciam, os homens contemplavam discretamente a beleza da moça. A paragem ia ficando cada vez mais repleta de pessoas… Mais gente ia chegando… Entre eles um jovem, não era assim bonito, mas, pronto, estava aprumado: uma camisa azul; calças de pano cinzento-escuro; e uns sapatos pretos.

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O jovem vinha do oeste quando chegou naquela paragem. Observou os que já lá estavam, levantou as sobrancelhas e abanou a cabeça para os lados.

Poucos carros circulavam àquela altura. Entre a estrada e as casas a volta havia uma distância de uns 80 cm. Os carros passavam no meio da estrada porque havia um armazém ao lado da paragem e estava ali um camião estacionado, obstruindo a visão dos que estavam a espera dos “chapas” vindo do Este (Padaria Boane, o terminal).

Então, boa parte das pessoas ficou mesmo parada nos primeiros centímetros da estrada, alguns no passeio, e outros deambulavam indo, de uma vez a outra, para o centro da estrada para espreitar se atrás do camião branco havia um mini-bus.

O jovem reduziu o passo, continuou a observar e, de repente, viu o encanto de mulher parada entre os que estavam na paragem. Uma alegria transbordante escalou o rosto dele. Propositadamente, andou até passar bem em frente da moça e depois parou ao lado direito dela. Ficou ali. Não disse nem “A” nem “B”, apenas parou ali, só contemplava, sem se denunciar para ela. Os outros homens aperceberam-se. A moça continuou indiferente.

Minutos depois um chapa com destino à cidade apareceu, mas estava lotado. Ninguém ali subiu. O jovem decidiu atravessar a estrada para o lado oposto a fim de fazer “ligações”. Ele levou o telemóvel que estava na mão direita para a esquerda, uma transição feita com as mãos à altura da cintura. Depois, a um passo lento, como se a estrada fosse dele, atravessou. Parou em frente de uma mercearia que ali existia.

A mercearia tinha sido construída dentro de um quintal, e interrompia o muro que protegia o quintal. O formato lembrava uma baliza de futebol: a parte das redes está por fora, e junto dos postes há uma linha que vai até aos quantos. Isso! Naquele caso a linha que ia até aos cantos era o muro branco e a parte da baliza era a mercearia. O jovem subiu no passeio de betão e em pé, de costas para a mercearia, encostou o seu ombro direito no muro e levou a perna direita, cruzou com a esquerda, e envolveu-se com a distracção, mexendo o telemóvel, enquanto esperava pelos “chapas”. Estava sozinho ali, mas momentos depois parte dos que estavam em frente do prédio, incluindo a guitarra personificada, decidiu, também, atravessar.

Quando a guitarra personificada chegou ficou a frente do jovem, um pouco afastada para a direita. Tinha uma pequena carteira na mão esquerda, junto a um lenço dobrado, um galaxy na mão direita. De repente o telemóvel da moça tocou e ela atendeu. Ninguém prestou atenção nela até que ouviu a moça iniciando uma gritaria ao telemóvel:

– Mamã não me chateia. Vou para onde o quê? Vou para onde o quê? Vou para um sítio. Onde você entra nisso? – berrou a moça, gesticulando violentamente com o braço esquerdo.

O jovem desencostou o muro, parou de mexer no telemóvel, olhou para a guitarra personificada com semblante de espanto estampado no rosto. As senhoras à volta, só repetiam: Ish! Ish!

– Não me enerva! Não me enerva! Não me enerva! Eu disse para não me confusionar o juízo porcaria phaa! Já disse que vou a um sítio, por acaso eu disse que não hei-de voltar? Sempre a me confusionar, sempre a me confusionar, aaaaaaaAAAAA!!! – continuou a moça com a gritaria violenta até que a mãe desligou a chamada na cara dela.

Após dizer “alô” três vezes, tirou o galaxy da orelha e atentou para o ecrã. Depois soltou um palavrão, levou o telemóvel para mão esquerda, onde estava a carteirinha e o lenço. A seguir, colocou a mão direita na testa. À sua volta, as senhoras comentavam condenando a moça, outras nem falavam, apenas olhavam para ela e faziam cara de desprezo.

Ainda com o semblante espantado, o jovem que contemplava a guitarra personificada, desceu do passeio e direccionou-se à moça:

– Posso ajudar-te?

A jovem olhou para ele e não reagiu.

– Seja adaptável, a tua mãe vai parar de te confusionar.

– Suca! Vai cuidar da sua vida. Não se meta em assuntos que não te chamaram…

De costas, o jovem recuou.

– Mas você também… Ia para onde? Até a mãe dela que lhe nasceu não conseguiu pôr ela na linha, pensa que vai ser você? É só olhar – aconselhou a senhora que apenas fez cara de desprezo.

– Moça bonita, bonita, bonita, mas ishh…

– Paciência, meu filho. Procura outra, essa não dá para ti – reagiu a senhora, gargalhando – é um barulho – intensificou a gargalhada.

As senhoras que comentavam condenando continuaram. A guitarra personificada permaneceu na paragem como se não se estivesse a falar dela. Os “chapas” começaram a chegar sucessivamente e a paragem ficou evacuada.

[Fim]

About Author /

É jornalista e webdesigner desde Setembro de 2013. Na sua caminhada jornalística, está registada sua passagem pelo jornal O Nacional; Revista ÍDOLO, onde chegou a desempenhar as funções de editor executivo; para além de ter sido oficial de marketing digital na Ariella Boats. Foi, também, jornalista correspondente da Revista MACAU, em Moçambique. Actualmente é jornalista do jornal Notícias. É, desde 2020, licenciado em jornalismo, pela Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Sua caminhada no mundo do empreendedorismo digital iniciou com o lançamento da plataforma Biografia, em 2016. É também, o fundador do site evangelístico Chave de Davi, em 2018; e da loja online O Ardina Digital. Todos projectos foram concebidos ao lado do seu amigo Deanof Potompuanha.

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