Antecedentes da morte de Samora
Biliões de acontecimentos ocorrem no mundo por dia e nem todos são alvos de noticiabilidade, mas os factos havidos de 1 a 19 de Outubro de 1986 levam-nos a perceber que o trágico acidente de aviação que vitimou o Pai da Nação moçambicana, Marechal Samora Machel, até então Chefe do Estado da República Popular de Moçambique (RPM), deu-se num dos momentos mais altos de combate ao “apartheid”.
Folheando todas edições do jornal “Notícias” do mês de Outubro de 1986, Biografia encontrou assuntos que não podia deixar de partilhar com o leitor. Vale a pena realçar que naquela altura a África Austral estava a ser assolada pelo regime do “apartheid”, protagonizado pelas autoridades de Pretória, na África do Sul (RAS).
“Há uma guerra em curso na África Austral – uma guerra pelo controlo dos Estados com Governos de Maioria. RAS decidiu defender o ‘Apartheid’ fazendo guerra, primeiro fora das suas fronteiras, e o custo em vidas humanas e destruição é, de longe, mais alto que dentro do país”, escreveu o jornalista Tomás Vieira Mário, citando o livro de um jornalista britânico que esteve em Moçambique, Joseph Hanlon.
Para fazer face a ela, os países da Linha da Frente (Moçambique, Angola, Zimbabwe, Tanzânia, Zâmbia, Botswana) lutavam a todo custo para pôr fim a este regime, através de intensos contactos diplomáticos tendentes a coordenar a resposta adequada aos planos dos sul-africanos.
Após o então Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Ronald Reagem, ter vetado a Lei de Duras Sanções Económicas contra Pretória por causa do “Apartheid”, o dispositivo foi ao Senado e caso o Congresso norte-americano votasse a favor a proposta do Congresso Nacional Africano (ANC) se tornaria em lei mesmo contra a vontade de Reagem.
Após participar na cerimónia de celebração do 20.º aniversário da independência do Botswana, realizada em Gaberone, Machel regressou e, à noite, recebeu Maureen Reagem, filha do Presidente dos EUA, na Ponta Vermelha (Maputo) e ofereceu-lhe um jantar. O convite foi formulado por Samora aquando do encontro entre ambos, que tinha ocorrido há meses, por ocasião da coroação do Rei da Swazilândia, em Mbabane. No dia seguinte (02/10/1986), Samora manteve um encontro com Maureen, que terminou assim a sua visita ao nosso país.
Enquanto isso, nos EUA a Organização de Unidade Africana (OUA) providenciava esforços para que o Senado anulasse o veto da Lei imposta pelo estadista Reagem. Denis Sassau Nguesso, Presidente do Congo e da OUA, anunciou, falando em conferência de imprensa, após um sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, que iria pressionar o Presidente dos EUA a apoiar sanções económicas duras sobre a RAS.
Segundo a nossa fonte, no mesmo dia, o Senado aprovou a Lei, anulando o veto de Ronald Reagem, com 78 votos a favor contra 21. O instrumento aprovado proibiu novos investimentos dos EUA e empréstimos à RAS, importação de aço, carvão, ferro, urânio, produtos agrícolas, alimentos, armas e munições sul-africanas, voos da companhia sul-africana, e a promoção de turismo.
A anulação do veto marcou o posicionamento dos EUA contra o “Apartheid” praticado na RAS. A decisão do Congresso norte-americano teve muitos apoios do mundo e a mesma começou a multiplicar-se por outras organizações do planeta Terra.
O Comité Executivo da Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) é uma das organizações que apoiou positivamente a decisão norte-americana, tendo aderido ao movimento “anti-apartheid”, aprovando uma resolução em que pede a todos países membros para suspenderem as ligações aéreas com a África do Sul e denunciarem os acordos bilaterais de transporte aéreo com este país.
A Agência Internacional de Energia Atómica foi outra. Dois terços dos membros da AIEA recomendaram expulsão da RAS do órgão, enquanto a Holanda acordou em incitar os restantes membros da CEE (Comunidade Económica Europeia) a alargarem o pacote de sanções contra o regime do “Apartheid”.
Em retaliação, o Governo sul-africano suspendeu o recrutamento de mineiros moçambicanos nas minas daquele país e deu ordens para que os que trabalhavam nas minas regressassem a Moçambique logo que terminassem os contratos, uma decisão anunciada na Cidade do Cabo. Tal como foi escrito no jornal a 9/10/1986, a decisão não tinha nenhuma vantagem para a RAS, uma vez que os mineiros moçambicanos eram os de melhor qualidade na época, porém, o interesse de prejudicar Moçambique falou mais alto.
O Presidente norte-americano, Ronald Reagem, lamentou a atitude da RAS e apelou a Moçambique e as autoridades de Pretória que se sentassem à mesa e negociassem esta posição dos sul-africanos.
No dia 11 daquele mês, foi noticiado que um comando sul-africano infiltrou-se em Moçambique. “É necessário que procuremos esses assassinos, porque não vieram com uma mensagem de paz. Apanhem vivos esses assassinos para que eles nos venham explicar o que querem no nosso país”, disse o Ministro da Segurança (na altura), coronel Sérgio Vieira, que falava no âmbito da comemoração do 11.º aniversário do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP).
Eduardo Faleiro, Ministro para os Negócios Estrangeiros da Índia, depois de visitar sucessivamente o Botswana, Zâmbia e Angola, manteve a sua digressão pelos países da Linha da Frente passando por Moçambique, com vista a discutir com o Governo do nosso país a problemática da África Austral, no âmbito das sanções económicas aplicadas a RAS pela comunidade internacional e a escalada de desestabilização política e económica provocada pelo regime do “apartheid” nos países da região.
Dois dias depois, Samora Machel (Presidente da RPM), Robert Mugabe (Primeiro-Ministro do Zimbabwe), José Eduardo dos Santos (Presidente de Angola), Kenneth Kaunda (Presidente da Zâmbia), Ali Mwinyi (Presidente da Tanzânia), e Quett Marire (Presidente do Botswana) reuniram-se em Maputo, naquela que ficou conhecida como Cimeira de Maputo.
Os chefes de Estado e de Governos da Linha da Frente procuravam, desta forma, encontrar meios para “salvar a paz” na África Austral, perante a ameaça de guerra generalizada provocada pelas autoridades de Pretória. Do encontro de cerca de seis horas nasceu a Declaração de Maputo pela Paz.
Com o documento, os países da Linha da Frente pediam ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para disponibilizar meios possíveis para terminar com a guerra, e apelaram a comunidade internacional, principalmente os países industrializados, para apoiarem Moçambique e os outros países desta organização na reconstrução da economia vitimada pelas agressões do regime dos sul-africanos.
Dias subsequentes à Cimeira, Samora e Eduardo dos Santos reuniram-se e concertaram posições, num encontro que mantiveram em Maputo e que foi solicitado pelo Presidente angolano.
No dia 16 de Outubro, Samora Machel recebeu uma mensagem do Secretário-Geral (SG) da OUA, Ide Oumarou, e do Presidente da Argélia, Chadli Bendjedid, face à ameaça de intensificação da agressão militar contra Moçambique, feita uma semana antes desta data pela África do Sul.
“Tenho acompanhado com grande preocupação as notícias sobre as ameaças belicistas do regime do Apartheid contra Moçambique e outros países da Linha da Frente. Elogio a posição firme do seu Governo sobre a questão do Apartheid e estou confiante de que a valentia de Moçambique irá resistir a campanha de desestabilização de Pretória”, lê-se na mensagem de Oumarou.
O SG assegurou apoio ao Presidente Samora, ao partido Frelimo, Governo e ao povo moçambicano, tendo adiantado que tencionava visitar Moçambique o mais urgente possível para se inteirar da situação.
Por seu turno, o Presidente argelino denunciou os preparativos do regime do “Apartheid” para invadir Moçambique, relacionando com as ameaças feita pelas autoridades de Pretória de suspender o recrutamento de mineiros em Moçambique.
Consta que as sanções económicas aprovadas pelo Senado norte-americano ainda não estavam em vigor e os países da Linha da Frente procuravam através de contactos diplomáticos assegurar rotas alternativas do comércio externo para os países encravados da região, tudo para que na eventualidade de aplicação de tais sanções por parte da comunidade internacional a economia dos países da África Austral não ficasse prejudicada.
Neste âmbito, a Linha da Frente reuniu-se com o Presidente do Zaire, Marechal Mobutu Sese Seko, a 19 de Outubro de 1986, domingo. O encontro denominou-se Cimeira da Zâmbia e foi realizado numa instância turística na Baia de Kasaba, nas margens do Lago Tanganica, tendo envolvido directamente os presidentes Samora Machel, Kenneth Kaunda e Eduardo dos Santos.
Samora partiu para o local na manhã do mesmo dia. Até ao cair da noite os presidentes continuavam reunidos.
A chegada ao nosso país do TUPOLEV-134, avião que transportava o Presidente moçambicano e mais 42 pessoas dentre os quais membros da delegação presidencial e tripulantes da aeronave, estava prevista para 21 horas e 30 minutos, porém, não aconteceu. Os meios aéreos da zona Sul de Moçambique desencadearam operações de busca e salvamento até a madrugada do dia 20, daquele mês, entretanto, os esforços redundaram no fracasso.
Marcelino dos Santos foi quem deu a conhecer à Nação e ao mundo a trágica ocorrência envolvendo o avião moçambicano, no qual viajava o Presidente Samora. A informação chegou às 8 horas e 30 minutos da manhã do dia 20/10/86, através dos microfones da Rádio Moçambique (RM).
O comunicado foi frequentemente transmitido pela RM durante o dia. Naquela segunda-feira, a emissão da RM apenas transmitiu música clássica e o comunicado. Pelas 21 horas e 30 minutos, Marcelino dos Santos confirmou, através dos microfones da rádio o falecimento do Presidente Samora Machel. E Mário Machungo procedeu à leitura de todos ocupantes do aparelho sinistrado e anunciou as comissões de trabalho criadas para o apoio às famílias das vítimas e de organização das cerimónias fúnebres.
O Governo moçambicano responsabilizou pelo desastre o então regime do “Apartheid” sul-africano que, por sua vez, sempre atribuía a queda do avião a erros da tripulação russa que comandava o aparelho, nunca tendo aberto uma nova investigação do caso. As duas posições criaram um clima de incerteza sobre o caso que subsiste até aos dias de hoje.
Observa-se, porém, que esta incógnita tem mais dados para além do que foi antes exposto, que podem servir para perceber melhor o contexto da morte de Samora. Por exemplo, o jornalista moçambicano, Carlos Cardoso, já tinha previsto a morte do Presidente num texto publicado cinco dias antes do dia 19 de Outubro de 1986. E a revista Tempo publicou, no dia 2 de Novembro do mesmo ano, depoimentos de três sobreviventes do acidente que acusaram as entidades sul-africanas de não terem-lhes prestado primeiros socorros quando chegaram ao local onde o avião se despenhou, em Mbuzini, África do Sul, cerca de cinco quilómetros de Moçambique.
Os sobreviventes afirmaram que as autoridades preocuparam-se em levar documentos espalhados e pastas dos papéis. Quando um dos ocupantes do avião sinistrado questionou, teve como resposta: “Não se preocupem, os documentos irão encontrar em Moçambique”, de um Polícia local que falava português. Uma das três testemunhas referiu que a primeira pessoa pela qual as autoridades da RAS perguntaram por ela quando chegaram no local do acidente foi Samora Machel.